Da guerra, da política e das palavras (PARTE II) PDF Imprimir e-mail
12-Jan-2009

a.jpgSegunda parte do texto sobre o  conflito na Palestina.

Ler primeira parte do texto  

 

Texto de Miguel Portas, Subscritor da Moção A

Neste conflito, as palavras e as dificuldades exigem informação esclarecida. Quatro aspectos merecem atenção particular:

1. Na concentração de dia 5, um marroquino grita a certa altura “morte aos judeus”. Ninguém o imitou. Os mais atentos tinham acabado de ouvir um cidadão askenázi prestar a sua solidariedade ao povo de Gaza. O conflito não é com os judeus nem com qualquer central de “conspiração judaica”. É com Israel e com o sionismo, uma corrente etnocêntrica que usa em seu benefício as passagens da Bíblia que lhe interessam. Do outro lado, o que está não é o Islão, mas um povo que, em grande medida, descende das primeiras tribos berberes que abraçaram o judaísmo. Qualquer “facilidade” neste domínio ressuscita os demónios do anti-semitismo cultivados pelo mito de que os judeus teriam sido espalhados pelo mundo para expiarem o pecado da crucificação de Jesus.  

2. Israel usa um argumento que incomoda a cultura laica da esquerda ocidental: a solidariedade é cúmplice do Hamas, que quer um Estado teocrático na Palestina. Eis uma típica amálgama. A solidariedade é com as vítimas e não com quem as representa. Por isso, a campanha tem como objectivo o cessar-fogo incondicional, a retirada imediata do invasor e a reabertura das fronteiras. É isto que dispensa os túneis por onde tudo passa de contrabando, das armas ao tabaco e à comida que falta.

3. Não vale a pena, contudo, iludir a questão do islamismo. O Hamas é herdeiro da Irmandade Muçulmana, tal como o partido que actualmente governa a Turquia. Não é uma criação da Mossad, como algumas teorias conspirativas difundem, mas foi levado ao colo. O islamismo político foi usado pelos EUA e por Israel, nas décadas de 70 e 80, para combater o nacionalismo árabe. Contudo, as suas raízes são bem mais profundas do que as emprestadas pelos aprendizes de feiticeiro. Como outros movimentos de massas, o islamismo político tanto deu para o fundamentalismo, como para a integração em sistemas políticos plurais. A envolvente externa e as condições de existência dos povos têm condicionado fortemente este tipo de escolhas. O Hamas decidiu, em 2005, disputar as eleições – as únicas realmente democráticas realizadas no mundo árabe. Washington, Bruxelas e Telavive não lhe deram qualquer hipótese quando estava preparado para a agarrar com as duas mãos. A questão não é se o Hamas quer um Estado teocrático, impossível num Levante marcado pela presença das três religiões do Livro. A questão é a de saber se os palestinianos podem, ou não, acreditar na democracia; e se Israel e o “Ocidente” se dispõem a falar com o islamismo político. A esquerda deve fazê-lo. Meter no mesmo saco islamismo político e terrorismo fundamentalista é uma asneira que se paga caro.

4. Finalmente, Israel acusa o Hamas de não reconhecer o Estado de Israel. Eis como a verdade pode esconder uma bela mentira. É indiferente a Israel que o Hamas o reconheça. A maioria dos regimes árabes não reconhece Israel. A questão relevante é outra: Israel nunca reconheceu o direito á existência de um Estado palestiniano porque se recusa a discutir fronteiras à mesa das negociações. O Hamas aceita a posição da liga Árabe que oferece o reconhecimento formal de Israel no quadro de uma solução global onde se clarificam as fronteiras dos dois Estados.

 

Muitos, entre nós, defendem o horizonte de um Estado binacional. Simpatizo com esta opção. Mas ela não se inscreve na ordem do dia. O movimento de solidariedade deve evitar o “ruído” sobre o futuro quando pressionado pelas urgências do presente. Este debate, bem como o da utilidade, ou não, da resistência armada, deve ser feito em espaços que não prejudiquem a amplitude dos movimentos nem dêem, a quem luta e sofre, a ideia de que é de Ocidente que vem a “iluminação”.

 

 
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